sexta-feira, 4 de abril de 2014

XXII - O CHEIRO DA MORTE

-FARDA OU FARDO?-
Aterra o Alouette, transportando os feridos ligeiros, que são prontamente socorridos, mas nada de grave, e também traz no seu bojo o corpo do montijense, que é levado, silenciosa e respeitosamente, para uma tenda, que ficará vazia, e lá depositado no chão, na lona. À noite, entro sozinho no seu aposento provisório. De camuflado, aparentemente incólume, sereno, parece que está a dormir. Reflito sobre este trágico acontecimento e apercebo-me instintivamente como o destino nos é cruel: ofereceu-se voluntariamente para esta tarefa de apoio logístico; dois dias antes estávamos todos a jogar futebol junto à Pista Nova … E a família descansada em casa como irá reagir ao receber esta notícia? E se fosse eu? A roleta pára num ponto indeterminado …

No dia seguinte, logo pela manhã, chega um DO (avião Dornier) da nossa Força Aérea. Traz expressamente um Soldado do PAD (Pelotão de Apoio Direto), habituado à função mórbida de soldador … de urnas. Apercebo-me da sua destreza na tarefa, sinal provável de que pouco descansa. Sou sabedor, nesse momento, e para minha surpresa, que é procedimento normal colocar-se cal dentro da urna metálica para facilitar a decomposição do cadáver. Tem lógica, mas nunca tinha pensado nisso. Acabado o trabalho, a urna é metida dentro dum caixão que possuíamos como dotação e o DO encarrega-se de o levar ao seu novo destino … alterado poucas horas antes.

É preciso reagir ao mal-estar psicológico porque eu estou na Guerra, onde já sabia que se pode morrer, ficar ferido e até estropiado. Mas o choque é profundo. E tenho que preparar a fase final para eu também poder abalar para Serpa Pinto.

Como não sobrevivemos sem comer, e ainda vamos estar mais uns dias, é preciso ir à caça. Os voluntários que sempre se disponibilizaram para esse tipo de patrulhamento, era o termo oficial, agora, com o rebentamento das minas, percebendo que afinal eles andam mesmo por ali, escapuliam-se. Falo com o Capitão Santana e ele diz-me: “Mota, tente conseguir voluntários. Se não os arranjar, selecione o pessoal que entender e arranque! Trate disso e comande você! Eu só tenho cá metade do pessoal, o resto já abalou, e tenho muito que tratar agora na sobreposição!” Apenas dois Soldados se ofereceram, os outros escolhi-os eu, pois teriam que comportar, no mínimo, o equivalente a uma Secção, reforçada.  Arranco com dois Unimogues, ando uns duzentos metros e saio da picada. Meto-me a corta-mato, pois, desse modo, jamais acionarei uma mina anti-carro. Tive necessidade de fazer mais três caçadas, agora acompanhado já dos maçaricos para eles se adestrarem na matéria. Aprenderam rapidamente.
APÓS REGRESSO DUMA CAÇADA
             
Carlos Jorge Mota

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