segunda-feira, 24 de março de 2014

XVI - UM TIRO OU ... DOIS TIROS? EIS A QUESTÃO!

-FARDA OU FARDO?-
Num dia que julgava ir ser rotineiro, vejo o Fernando Temudo entrar na Coutada, pelo lado norte, sentado na Berliet ao lado do condutor Ajax (alcunha que o António Oliveira Costa -  atualmente um industrial de calçado bem sucedido - carrega desde a sua Recruta, por ser muito branquinho, e que ainda hoje faz parte do seu Cartão de Visita, quando se apresenta junto dos Camaradas), aos gritos de “o médico! o médico!”.  Estupefacto, pois não vislumbro qualquer anomalia, vejo a viatura carregada de nativos, homens e mulheres, eles fardados de camuflado e armados, elas com as suas tralhas domésticas.

Duas mulheres tinham sido alvejadas com uma Espingarda Mauser (calibre 7,9 mm, mais largo, portanto, que o da G3, que é 7,62 mm) e uma delas trazia um garrote na coxa, colocado pelo Temudo. O médico, Dr. Xavier da Cunha, acorre pressuroso. Analisa, pergunta o que aconteceu. O Temudo diz que houve um disparo acidental de um tiro. Ele responde logo: “um tiro não! dois tiros!” “Uma tem um buraco na perna, de cada lado, de entrada e saída; a outra tem dois buracos, na coxa, de entrada, e só um de saída! Portanto, dois tiros!” Retorque o Temudo: “não, foi só um tiro!” Entra-se ali numa troca de afirmações inconciliáveis, com os dois irredutíveis. Concretizado o indispensável socorro emergente, foi feita a evacuação das mulheres e elaborado o respetivo Relatório.

Somente muito mais tarde vim a saber o que se passou: O Capitão Santana chamou o Temudo e disse-lhe: “Temudo, tenho uma missão especial para si: vai a Mavinga com uma Berliet buscar um grupo de GE’s (sigla de Grupos Especiais, tropa indígena normalmente com armamento capturado ao IN e utilizada em operações também muito especiais) e familiares e trazê-los para aqui, onde farão acampamento, junto a nós!”. Estranha ordem, uma viatura isolada, com dois militares, sem rádio … a Mavinga, local onde antes se tinham feito já duas operações!? Bom! Ordens são ordens, e quem ordena sabe, com toda a certeza, o que está a fazer!... Levantam Rações de Combate. Passam o Destacamento do Luengue e tomam a picada de Mavinga. Chegados, o Temudo apresenta-se ao Oficial-de-Dia à Unidade e diz ao que vai. Ele questiona: “vocês devem estar cheios de fome, não? Vá chamar os outros para comerem alguma coisa!”. -“Não há mais ninguém, somos só nós os dois” responde. -“Coooomo?” “Uma só viatura e … só com dois homens?!”. “Bom! O problema não é meu!”. Comeram, abasteceram a Berliet, carregaram o pessoal e ala para a picada rumo à Coutada. Agora já eram muitos, e todos armados. No caminho, o Chefe deles diz que estão com fome e pede ao Temudo para pararem a fim de caçarem algo. Tempo aproveitado para descanso, que a viagem é longa e maçadora. Acabado o repasto, ao subir para a viatura, um deles, incauto, pois não levava a arma em posição de Segurança, dá um tiro. O gatilho prendeu-se num dos ferros da viatura. A bala passa entre o Temudo e o Ajax, perfura a perna duma mulher, perfura a coxa, junto à virilha, duma outra, faz ricochete e volta a entrar nela. Uma delas, a que menos sangrava, era a que mais se queixava com dores; a outra, com o sangue a sair em catadupa, quase não gemia. O Temudo imediatamente faz um garrote, tal qual aprendemos no Curso para fazer face a emergências, aliviando o aperto de tempos a tempos, com vista a facilitar a circulação sanguínea, e procura ir controlando a situação. Todos a bordo em silêncio, aceitando em absoluto as medidas tomadas. Mas ainda faltavam muitas horas para chegar à Coutada … O autor do disparo trazia duas mulheres e uma delas foi a sua vítima.
O AUTOR ENTRE O GRUPO DE GE'S, JÁ COM O ACAMPAMENTO DELES CONCLUÍDO
Para os intervenientes, nunca houve qualquer dúvida que foi mesmo só um tiro. Depois, em Serpa Pinto, constatou-se que o segundo furo na coxa foi feito pela mesma e única bala … que ficou alojada dentro da perna. Felizmente ambas as mulheres recuperaram. Não fosse a pronta e eficaz medida aplicada pelo Temudo uma delas não teria sobrevivido.


Carlos Jorge Mota

Sem comentários:

Enviar um comentário