segunda-feira, 31 de março de 2014

XVIII - NOTAS SOLTAS ...NO KUANDO-KUBANGO

-FARDA OU FARDO?-
O Comandante e … o Patrão
Como disse atrás, o Tenente-Coronel Soares, Comandante do meu Batalhão, acompanhou toda a nossa viagem até à Coutada, ao volante do “seu” jipe, acompanhado do seu condutor privativo. Como era habitual, quando se ia para a mata, ou em trânsito para ela, nada se levava em cima dos ombros, todos possuímos aparentemente o posto de Soldado. Na travessia duma cidade, um civil dirige-se a ele e faz-lhe uma pergunta sobre algo da estrada. Ele respondeu: “não sei! Isso é aqui com o Patrão!, e aponta para o lado. O homem fica perplexo, pois vê um “soldado” ao volante, já com quase 50 anos, meio careca, e o homem ao lado, de 21 anos, é que é o patrão? É que Patrão … é mesmo o nome do rapaz.

2 Dias de Prisão …
Para travessia do Rio Cuito, no Dirico, utilizava-se uma jangada, que só transportava uma viatura de cada vez, e vazia. Demorámos nisso quase dois dias. Como não sou apologista de ordenar algo cuja dificuldade de execução não tenha avaliado, e como era preciso descarregar as viaturas de todo o seu conteúdo (e carregá-las de novo, do outro lado do rio, após a travessia), desde géneros alimentares a cunhetes de munições, passando por todo o restante e muito diverso tipo de material, resolvi ajudar o pessoal e “alombar” também. De repente, aparece-me o Comandante, chama-me ao lado e diz-me, numa voz calma mas firme: “você está aqui para coordenar, não para andar com caixas às costas. Se o volto a ver nesta situação, enfio-lhe com 2 dias de prisão!”. E a punição dum Graduado implicava obrigatoriamente a sua transferência de Unidade. Aconteceu, infelizmente, já quase no fim da Comissão, com um Camarada meu.

Acidente na Jangada
Não presenciei, foi-me narrado, mas que me marcou profundamente: um moço nativo, civil, ficou com a perna entalada entre a jangada do Dirico e a margem. Como o ferimento era aparentemente grave, alguém solicitou, através dos canais próprios, a evacuação do rapaz. Os  “nossos primos” tinham uma base aérea a menos de 10 minutos de voo. Aterrado o Cessna, o piloto indaga o que se passa e verifica, obviamente, que se trata dum negro, e civil. Manda aguardar, fala em afrikaans com o Rundu. Diz, depois, que o avião está avariado e tem que regressar à base. Verdade? Talvez! Mentira? Se sim, seria por ser civil e eles não se sentirem “obrigados” a isso? É que, conhecendo agora os termos do ALCORA, o Acordo era meramente militar … Seria por ser negro? Não sei. Soube depois que foi amputada a perna ao infortunado nativo. Mas foi coisa que me incomodou!

Fogo no Cessna
Carregado o Saco do Correio e algo que havia sempre a remeter para Serpa Pinto, despeço-me do piloto carcamanho e fico a aguardar a descolagem. Ele põe o motor a trabalhar e, de repente, uma labareda na parte inferior do avião, provinda do motor, irrompe. Como se trata de uma aeronave que, pousada, fica com o nariz levantado, ele de nada se apercebe. Atravesso-me à frente do avião, para evitar que ele arranque, esbracejando com vigor e a gritar “Fire! Fire!”. Com o barulho do motor ele nada ouve mas percebe que algo de anormal se passa. Sai apressadamente da cabine, vê o fogo, corre a buscar um extintor e domina-o rapidamente. Deveriam ser restos de combustível que andavam por ali e, com o aquecimento repentino, deflagraram… Ficou pálido, sentou-se no chão uns minutos. Pediu-me para estar atento e voltou para dentro, deixando a porta aberta. Põe o motor a trabalhar, aquece uns minutos e pergunta-me, gesticulando, se noto alguma anormalidade. Faço-lhe sinal com o polegar que parece estar agora tudo bem. Fecha a porta. Acena-me dum modo muito enfático, como que a agradecer, arranca, eleva-se nos céus e toma o rumo definido.

12 Candeias
x 12



Solicitou-se a Serpa Pinto transporte para 12 Candeias. Aterra o Cessna dos “nossos primos”, vai descarregando o conteúdo, sempre com o bendito CORREIO, e diz o piloto: “I have here in the aircraft a small space for twelve oil-lamps, but I must charge somethings yet at my base, in Rundu”  (eu tenho aqui no avião um pequeno espaço para 12 candeias, mas tenho ainda que carregar umas coisas na minha base no Rundu). Fora-lhe transmitido que iria transportar 12 candeias. Nas Forças Armadas, a cada Posto corresponde um número. A Segundo-Sargento era (é ainda?) o número 12. Era o Sargento Candeias, de seu nome, que precisava de ir a Serpa Pinto. Alentejano de gema, de Ponte de Sor, latagão duns quilos bons, amigo do seu amigo, homem muito dinâmico, o que contraria a ideia errada de molenguice que se atribui àquela gente, teria que se reduzir ao espaço de 12 candeias …  Lá teve ele que aguardar mais uns dias.

O Palaio e os seus patos
Logo à chegada à Coutada do Mucusso, o nosso Comandante de Batalhão, que nos acompanhou às Terras-do-Fim-do-Mundo, resolveu ir à caça e fez-se acompanhar dum pequeno grupo. Encontraram uma peça jeitosa cujas patas o Comandante deduziu logo serem boas para fazer as pernas duma mesa. Dispararam sobre o bicho, mas ele não morreu, apenas ficou ferido e largando um pequeno rasto de sangue na sua fuga. Para facilitar a localização, e pressupondo que ele estaria por perto, o Comandante e outro Camarada seguiram no Unimogue na sua peugada enquanto os restantes desceram da viatura e prosseguiram a busca, mas apeados. O Comandante desorientou-se nos azimutes e seguiu a direção leste enquanto os restantes conseguiram localizar a peça, que entretanto soçobrou. Esperaram, esperaram, mas nenhum sinal dos outros foi recebido. Entretanto escureceu. E agora, que fazer? O Palaio prontificou-se a ficar a tomar conta da peça de caça, mas, por precaução, subiu para uma árvore de porte razoável munido da sua arma enquanto os outros sobrantes, que eram dois, foram fazer pesquisas do terreno na tentativa de encontrarem vestígios de retorno. Atraídos pelo cheiro do sangue, começam a afluir aves de rapina, leões, leopardos e toda a bicharada ávida de repasto. O Palaio lá foi abatendo ou afugentando alguns no sentido de salvaguardar a peça. Mas ... e agora, se também os outros não aparecem? Resolveu então abandonar o local e desprezar o bicharoco, pois não tinha como levá-lo. Descobriu o caminho de retorno sozinho e foi o primeiro a chegar ao Aquartelamento, já noite adentro. Trazia às costas, para seu orgulho, já morto, um "pato" grande, e, cheio de regozijo, dizia: "há ali muitos, muitos, mais!". Só que o "pato" do Palaio não era mais que um abutre ... Os outros militares, que eram quatro, divididos em dois grupos separados, chegaram no dia seguinte, em momentos bem diferentes.


Tiro na mosca
No Destacamento do Luengue, durante uma caçada para abastecimento alimentar, e estando apeado, um Soldado nosso vê de repente vir em sua direção, qual comboio expresso em velocidade acelerada, um rinoceronte, cabeça abaixada com o corno em riste. Levanta a arma, faz pontaria e abre fogo. O bicharoco cai à sua frente, morto. Mais tarde, Caçadores Profissionais disseram que lhe tinha saído a sorte grande. O Rinoceronte, afirmaram, tem a cabeça com uma couraça, tipo blindagem, e há só, nessa zona, uma pequena área, entre os olhos, que é vulnerável. Mais disseram que um bicho destes tem que ser abatido (mas que não o faziam, avisaram logo, talvez lembrando-se que era proibido) com arma de calibre grosso e com bala especial. Na falta dessa bala, deveria cortar-se, em formato de cone, um bocado dessa outra, para que, com o impacto do embate, ela achatasse e alargasse o poder de perfuração. Não me lembro já do que foi feito ao cadáver do bicho, mas deverão ter sido cumpridas todas as normas, até porque o tiro só foi efetuado em legítima defesa. Não sei se esse Soldado tem sorte ao jogo …


Natal de 1969
Noite de Natal. Regressa, precisamente ao anoitecer, vindo duma missão, um Grupo de Combate comandado pelo Temudo. De repente, um Soldado, em pânico, diz que perdeu a Arma. Durante o trajeto, talvez com receio de adormecer porque o ronronar do motor do Unimogue é convidativo, pousou a G3 no chão da viatura, junto a si. E agora? É de noite, voltar para trás nada resultará pois é escuro como breu. Acertou-se, de imediato, que, logo pela manhãzinha, se faria o percurso inverso na tentativa de encontrar a malvada escapulida. Ofereci-me como voluntário para ajudar. Dia de Natal, aí vamos nós quais cães farejadores. Percorremos durante umas 7 horas toda a picada, perscrutando a sua orla. E … encontrámo-la mesmo, deitadinha no chão, à espera de mão caridosa ou de uma outra menos misericordiosa, o que seria extremamente grave. Foi precisamente numa zona onde habitavam avestruzes de grande envergadura (devem continuar ainda lá, mas já os descendentes). À nossa passagem desatam numa correria, qual avião rolando na pista para descolagem, que chegam a atingir cerca de 80 Kms por hora. Espetáculo lindo, maravilhoso de se ver. Foi só nessa zona, já muito próximo de Bambangando, que vi este tipo de animal. Regressados ao Aquartelamento, e para alívio geral, com a recuperação concretizada. Tempo ainda para se saborear algo de diferente. Para não nos esquecermos que era Natal …

ESPINGARDA AUTOMÁTICA G-3

                    
Carlos Jorge Mota

OUTROS CONVÍVIOS

-NOTÍCIA-
Aqui está o último PE, publicado no CM.
JM
PONTO DE ENCONTRO
CORREIO DA MANHÃ
29MAR2014

sexta-feira, 28 de março de 2014

XVII - ROTINA QUOTIDIANA...OU A SUA QUEBRA BRUSCA

-FARDA OU FARDO?-
A Companhia recebeu entretanto um barco de fibra para patrulhamento do Rio Luiana, cujo curso passa na Coutada a uma distância duns 500 metros das instalações, e servia para abastecimento de água e banho higiénico, apesar de abundarem jacarés por ali, que eram mantidos em respeito de arma em punho.
                                   
                                 Rotina em serviço e em lazer
AO FUNDO,MULHERES DE
GES LAVANDO ROUPA
REFRESCANDO E HIGIENIZANDO


O VIOLEIRO E O COW-BOY
O JOÃO SILVA E O AUTOR

















O FLECHA CAMBEMBE, ENTRE O
JOÃO SILVA E O AUTOR. FOI FERIDO
COM UMA GRANADA NUMA
SEXTA-FEIRA 13 (FEV 70)

ANTES DO JOGO















TRÊS PERSPETIVAS DO QUARTO DO AUTOR
Quebra brusca de rotina

O ENFERMEIRO SOARES RECEBENDO UM FLECHA FERIDO NUMA OPERAÇÃO
OUTROS MAIS GRAVES SEGUIRAM DIRETAMENTE PARA SERPA PINTO. E UM
OUTRO MORTO, VINDO NESTE HELI, FOI ENTERRADO JUNTO AO AQUARTELAMENTO,
EM COVA BEM FUNDA, COM PEDRAS POR CIMA PARA EVITAR A PROFANAÇÃO PELAS HIENAS.
GENERAL LUZ CUNHA ,
COMANDANTE-CHEFE
DA RMA, DE VISITA À
COUTADA DE MUCUSSO
GENERAL LUZ CUNHA ,
COMANDANTE-CHEFE
DA RMA, DE VISITA À
COUTADA DE MUCUSSO
















Na foto da esquerda: o João Silva, o General, o 1º Vilares, o Macedo, o Médico (encoberto), o Adário e o Autor
Na foto da direita:  o Tenente-Coronel Morais (Cmdt do Batalhão de Cavalaria 2870, a que estávamos adstritos)
dois encobertos, o General, o Médico, o Ajudante-de-Campo do General, o Macedo, o Adário,  o Glória e o Autor

           

Carlos Jorge Mota

segunda-feira, 24 de março de 2014

XVI - UM TIRO OU ... DOIS TIROS? EIS A QUESTÃO!

-FARDA OU FARDO?-
Num dia que julgava ir ser rotineiro, vejo o Fernando Temudo entrar na Coutada, pelo lado norte, sentado na Berliet ao lado do condutor Ajax (alcunha que o António Oliveira Costa -  atualmente um industrial de calçado bem sucedido - carrega desde a sua Recruta, por ser muito branquinho, e que ainda hoje faz parte do seu Cartão de Visita, quando se apresenta junto dos Camaradas), aos gritos de “o médico! o médico!”.  Estupefacto, pois não vislumbro qualquer anomalia, vejo a viatura carregada de nativos, homens e mulheres, eles fardados de camuflado e armados, elas com as suas tralhas domésticas.

Duas mulheres tinham sido alvejadas com uma Espingarda Mauser (calibre 7,9 mm, mais largo, portanto, que o da G3, que é 7,62 mm) e uma delas trazia um garrote na coxa, colocado pelo Temudo. O médico, Dr. Xavier da Cunha, acorre pressuroso. Analisa, pergunta o que aconteceu. O Temudo diz que houve um disparo acidental de um tiro. Ele responde logo: “um tiro não! dois tiros!” “Uma tem um buraco na perna, de cada lado, de entrada e saída; a outra tem dois buracos, na coxa, de entrada, e só um de saída! Portanto, dois tiros!” Retorque o Temudo: “não, foi só um tiro!” Entra-se ali numa troca de afirmações inconciliáveis, com os dois irredutíveis. Concretizado o indispensável socorro emergente, foi feita a evacuação das mulheres e elaborado o respetivo Relatório.

Somente muito mais tarde vim a saber o que se passou: O Capitão Santana chamou o Temudo e disse-lhe: “Temudo, tenho uma missão especial para si: vai a Mavinga com uma Berliet buscar um grupo de GE’s (sigla de Grupos Especiais, tropa indígena normalmente com armamento capturado ao IN e utilizada em operações também muito especiais) e familiares e trazê-los para aqui, onde farão acampamento, junto a nós!”. Estranha ordem, uma viatura isolada, com dois militares, sem rádio … a Mavinga, local onde antes se tinham feito já duas operações!? Bom! Ordens são ordens, e quem ordena sabe, com toda a certeza, o que está a fazer!... Levantam Rações de Combate. Passam o Destacamento do Luengue e tomam a picada de Mavinga. Chegados, o Temudo apresenta-se ao Oficial-de-Dia à Unidade e diz ao que vai. Ele questiona: “vocês devem estar cheios de fome, não? Vá chamar os outros para comerem alguma coisa!”. -“Não há mais ninguém, somos só nós os dois” responde. -“Coooomo?” “Uma só viatura e … só com dois homens?!”. “Bom! O problema não é meu!”. Comeram, abasteceram a Berliet, carregaram o pessoal e ala para a picada rumo à Coutada. Agora já eram muitos, e todos armados. No caminho, o Chefe deles diz que estão com fome e pede ao Temudo para pararem a fim de caçarem algo. Tempo aproveitado para descanso, que a viagem é longa e maçadora. Acabado o repasto, ao subir para a viatura, um deles, incauto, pois não levava a arma em posição de Segurança, dá um tiro. O gatilho prendeu-se num dos ferros da viatura. A bala passa entre o Temudo e o Ajax, perfura a perna duma mulher, perfura a coxa, junto à virilha, duma outra, faz ricochete e volta a entrar nela. Uma delas, a que menos sangrava, era a que mais se queixava com dores; a outra, com o sangue a sair em catadupa, quase não gemia. O Temudo imediatamente faz um garrote, tal qual aprendemos no Curso para fazer face a emergências, aliviando o aperto de tempos a tempos, com vista a facilitar a circulação sanguínea, e procura ir controlando a situação. Todos a bordo em silêncio, aceitando em absoluto as medidas tomadas. Mas ainda faltavam muitas horas para chegar à Coutada … O autor do disparo trazia duas mulheres e uma delas foi a sua vítima.
O AUTOR ENTRE O GRUPO DE GE'S, JÁ COM O ACAMPAMENTO DELES CONCLUÍDO
Para os intervenientes, nunca houve qualquer dúvida que foi mesmo só um tiro. Depois, em Serpa Pinto, constatou-se que o segundo furo na coxa foi feito pela mesma e única bala … que ficou alojada dentro da perna. Felizmente ambas as mulheres recuperaram. Não fosse a pronta e eficaz medida aplicada pelo Temudo uma delas não teria sobrevivido.


Carlos Jorge Mota

OUTROS CONVÍVIOS

-NOTICIA-
Aqui está um novo PE, publicado no último sábado dia 22 no CM.
JM
PONTO DE ENCONTRO
CORREIO DA MANHÃ
22MAR2014

sexta-feira, 21 de março de 2014

XV - UMA CAÇADA ESPECIAL

-FARDA OU FARDO?-
Patrulhas sucessivas, consubstanciadas principalmente nas deslocações ao Dirico e Calai, para abastecimento de combustível e nas ações de caça, único alimento substancial, normalmente de gazelas ou gnus, quer por serem os mais abundantes quer pelo sabor excelente da sua carne. Numa dessas incursões, deparamo-nos com uma manada de centenas de búfalos, em terreno aberto, em corrida, naquela savana imensa, a uns trezentos metros. Avistando-nos, pararam e, numa atitude de autodefesa, colocaram-se em linha, virando-se para nós. Estancámos os Unimogues e ficamos a observar, receosos que, nessa disposição defensiva, arrancassem em correria. Ficaríamos em massa disforme. Mas não, recolocaram-se em fila indiana e retomaram a marcha. Recompostos e aliviados do susto, dirigimos as viaturas para o fundo da manada na tentativa de isolarmos um animal, mas sempre atentos à reação dos restantes. A dado momento, um casal, macho e fêmea, foi ficando para trás, provavelmente já cansadíssimos. Virámos então as viaturas na sua direção, lateralizando-os, e tentando modificar o sentido da sua marcha, em galope. Assim aconteceu. Viraram para trás e continuaram a sua correria louca … mas estavam já isolados. O resto da manada seguiu o seu destino. A dado momento, o macho, provavelmente não aguentando mais aquela aceleração, parou e começou aos urros, assustadores. Deixámos a fêmea continuar a sua correria e concentrámo-nos naquele bicharoco, mais pujante, logo, mais pesado, mais carne, portanto. Ficamos expectantes e olhamos em redor. Nem uma árvore de grande ou médio porte, onde nos pudéssemos refugiar para uma eventual situação reativa. Passados uns cinco minutos, talvez já recomposto e sentindo-se acossado, vemos repentinamente aqueles seiscentos quilos de carne abaixar os cornos, num berrar horrendo, e correr na nossa direção, perpendicularmente à posição dos Unimogues. Ficamos estarrecidos pois ele derrubaria a viatura por si selecionada e desfaria por completo quem lá fosse instalado. Já a uns dez metros de proximidade, o João Silva (irmão dum conhecido escritor e jornalista desta praça, César Príncipe, e que viria a exercer a profissão de Delegado de Informação Médica) dá um alto berro para o condutor: - ”arranca!”. O bicho deverá ter-se assustado com o grito e deu uma volta de 90º, mas sempre em correria. Ficamos amarelos, brancos, sem pinta de sangue. Mas já que éramos duma Companhia de Caçadores … aí vamos nós novamente na sua peugada. Ele já não deveria aguentar mais, porque estancou a espumar-se abundantemente. Combinámos o ponto onde deveria levar o tiro, na parte superior da pata esquerda da frente, e então abrimos fogo simultaneamente. Ele caiu, aos berros, e, como já não poderia levantar-se, aproximamo-nos, já apeados, e demos-lhe o tiro de misericórdia.
NA BALANÇA DE CAÇA GROSSA DA COUTADA DEU 623 KGS
E agora, como o transportar? Como se pega num peso daqueles e como o levamos? O desenrascanço tipicamente portuga logo emergiu: amarrámos o guincho duma das viaturas à cabeça do animal, travado pelos cornos, e fomo-lo arrastando para junto de uma árvore com sustentação razoável. Desmontámos o banco de um dos Unimogues e colocámo-lo transversalmente à frente, junto à chapa de separação do condutor. Encostámos essa viatura à árvore já escolhida. Passámos o guincho por cima dessa árvore e fomos içando, devagarinho, aquelas centenas de quilos. O Unimogue foi-o recebendo no seu seio muito devagar até ficar estabilizado. Algum pessoal passou para a outra viatura, apertando-se um pouquinho, e o restante sentou-se no dorso do nosso troféu.

E lá calculámos o azimute correto, quais patrulheiros em serviço, rumo ao Aquartelamento, sem captura de Inimigos, mas com uma peça especial de iguaria.


Carlos Jorge Mota

XIV - REGRESSO À COUTADA DE MUCUSSO

-FARDA OU FARDO?-
Piloto carcamanho muito jovem, de 20 anos, fez a melhor distribuição da carga, para equilíbrio do avião, como mandam as regras aeronáuticas, colocando o Saco do Correio atrás, juntamente com as cestas contendo legumes frescos, arrumou um saco com pertences seus, algum material requisitado pela Companhia e apetrechos que só à chegada percebi que nos eram alheios.

Decorridos uns bons 90 minutos após a descolagem, e indo nós numa amena cavaqueira, começa-se a visualizar as enormes chanas (savanas) a perder de vista, num horizonte mais alargado pela altitude de voo. De repente, ele, às gargalhadas, “pica” sobre uma manada de búfalos, passa em voo rasante, e ergue-se de novo nos céus. Já não sei de que lado tenho o fígado nem o estômago. A cabeça fica tonta de tal modo que entro numa situação de enjoo aflitivo. Os comandos eram duplos e viajávamos um ao lado do outro. Tínhamos intercomunicador, de contrário, com o barulho do motor, não nos ouviríamos, apesar de tão próximos. Digo-lhe como me sinto e ele responde-me, de pronto: “põe a mão na manche!” E, inexplicavelmente para mim – ainda hoje me interrogo como é isso possível -  não é que resultou mesmo? Serenei, fiquei tranquilo e estável. Então, vai daí, sempre às gargalhadas, resolveu fazer um quase looping … digo quase porque ele não fechou o círculo. Perdi por completo o sentido de orientação: já não sabia onde estava o céu e onde estava a terra … Era um tipo muito simpático, afável e muito conversador.

Decorridas duas horas de voo, avistámos, por fim, ao longe, as instalações da Coutada.
VISTA AÉREA DA COUTADA DO MUCUSSO
O “pássaro” faz um voo rasante às copas das árvores e aterra na Pista Nova. Entretanto, ele diz-me para ficar junto ao avião até à descolagem.
Descarregado tudo que a nós se destinava, ele faz-me sinal, de novo, para ficar na pista, mas no meio. Descola num espaço muito curto, sobe, dá meia volta, e, qual o meu espanto, “pica” sobre mim, que me obriga a atirar-me para o chão. Toma, de novo, um pouco de altitude, dá a volta, passa novamente, abana as asas, como saudação, e toma o rumo da sua Base no Rundu. Percebi, então, que o material não descarregado tinha como destino final aquele território.

Narro ao lº Vilares o que o Major Ló me havia transmitido em Serpa Pinto. Respondeu-me que, na minha ausência, tudo tinha sido já resolvido.

Aconteceu que em alguns Destacamentos tinha sido já detetada, antes da minha partida, uma falta de alguns géneros, incluindo Rações de Combate, tudo surripiado por mãos anónimas e velozes na arte. Constou-se que alguns soldados “compravam” o amor de algumas pretinhas bosquímanas com “aquelas guloseimas”. E como quem comanda é o responsável por tudo que os seus subordinados fazem ou deixam de fazer, foram instalados Autos de Averiguações e, claro, da conclusão tirada, como não se apuraram responsáveis diretos, sobrou para os respetivos Comandantes.  


Carlos Jorge Mota

terça-feira, 18 de março de 2014

XIII - DE LUANDA A SERPA PINTO

-FARDA OU FARDO?-
Aterro em Luanda e tenho a aguardar-me, no Aeroporto, o meu amigo Francisco Fontes, irmão do já citado Noé - que comigo tirou uma fotografia em casa dos meus pais -, e que igualmente viria a ser meu colega no mesmo Banco, terminando a sua carreira como Gerente do Balcão da Venda Nova. Transmito-lhe que está tudo bem com a sua família, entrego-lhe um pequeno pacote de que fui portador e relato a situação do meu pai. Ele estava por dentro de tudo mas nunca me havia revelado absolutamente nada. Dirigimo-nos para o domicílio de seu Tio António, na Avenida Brasil, próximo da Vila Alice – homem generoso e muito prestimoso, a quem muito fiquei a dever na vida, recentemente falecido em Celorico de Basto. Não soube atempadamente da sua morte razão por que não estive presente no seu funeral, o que muito lastimo -, casa onde eu estive aboletado durante os 3 meses enquanto a minha Companhia esteve de Serviço à Rede logo após o desembarque em 21 de maio do ano anterior. Os Graduados estavam autorizados a pernoitar fora do Quartel do Grafanil, havendo uma viatura que fazia a recolha domiciliária diariamente logo pela manhã cedo.

Fardo-me e dirijo-me imediatamente ao QG (Quartel-General) para me apresentar na Região Militar de Angola, a fim de carimbar o Passaporte Militar e, dessa forma, regularizar a minha situação de retorno à RMA. Fui dispensado de me apresentar nos Adidos uma vez que a viagem para Serpa Pinto teria lugar daí a dois dias, tempo aproveitado para gozar Luanda e os seus encantos.
O AUTOR E O XICO FONTES NA MARGINAL
NA ILHA DO MUSSULO














Trajando à civil, tomo um Friendship (avião turbo-hélice) da DTA para Serpa Pinto, via Nova Lisboa. Para minha surpresa, vejo na Pista de Aterragem, à chegada àquela longínqua cidade, o Major Ló, também trajando à civil. E para meu espanto, depois de cumprimentos feitos por ele a algumas pessoas que comigo viajaram, dirige-se a mim, pôs a mão no meu ombro e diz-me: “então Mota, como correram as férias?”. Fiquei admirado por ele ter conhecimento que eu viajava ali e ser sabedor do meu nome, não pertencendo eu ao seu Batalhão… A minha Companhia encontrava-se em reforço da sua Unidade mas não lhe era organicamente afeta. Dei-lhe uma resposta de circunstância e procurei ser afável. “Disparou” de imediato: “É preciso ir rapidamente para baixo pois há por lá uns problemas que eu quero ver resolvidos com urgência!”. Deduzi ao que se reportava, pois, antes da minha saída, tinham sido detetadas situações anómalas quanto a abastecimentos em alguns nossos Destacamentos. Com um ar respeitoso, disse-lhe eu: “vou já tratar à CCS do transporte no Cessna, pois quanto mais depressa lá chegar mais depressa mato o leão!”. Olhou para mim com um ar circunspecto, num misto de surpresa pelo atrevimento e algo que não estivesse a entender, tentando adivinhar o sentido dúbio das minhas palavras, e, inteligente como era (é, ele ainda é vivo), o seu semblante sofreu uma metamorfose rapidíssima: passou do olhar gélido, tipo “fuzilamento”, para o do sorriso, dizendo, com alguma simpatia: “a notícia do Luengue chegou rápida, já estou a ver!”. É que o Carlos Paulo, da Companhia de Cavalaria 2499, tinha abatido um leão no Destacamento do Luengue, o que era absolutamente proibido. Foi-lhe feita uma ameaça duma punição muito severa, mas, felizmente, nada aconteceu. Desconheço o destino que foi dado ao cadáver do bicho, desde a juba até aos ossos …

Feitas as necessárias e habituais diligências na Secretaria da Companhia de Comando e Serviços do Batalhão de Cavalaria 2870, eis-me pronto para embarque, no dia aprazado,  fardado de camuflado, no Cessna dos “nossos primos”, de regresso à minha “família militar”.


Carlos Jorge Mota

OUTROS CONVÍVIOS

-NOTÍCIA-
Aqui está mais um PE publicado no CM do último sábado.
JM
PONTO DE ENCONTRO
CORREIO DA MANHÃ
15MAR2014

domingo, 16 de março de 2014

LUNGUÉ-BUNGO DE NOVO...E A TECNIL

-TESTEMUNHO-
Voltamos a escrever sobre o local, onde o rio Lungué-Bungo cruzava a então picada (construía-se a nova estrada que mais tarde seria asfaltada) que ligava o Luso a Gago Coutinho.

À nossa companhia, após participar na Operação Escovar, na província do Bié foi-lhe atribuída a missão de efectuar a protecção próxima e afastada aos corajosos homens da Tecnil. Por vezes efectuávamos uma ou outra escolta a viaturas civis que nos poderiam levar até Gago Coutinho. A CCS e a 2504 estavam no Lucusse, a 2506 em Sacassange e nós íamos viajando, acompanhando os trabalhos que a Tecnil, primeiro no Canage, seguindo-se Lucusse e por fim, também de comissão de serviço, no Lungué-Bungo.

Dada a especificidade desta missão a companhia e a "rapaziada" da Tecnil passaram a andar sempre juntos. Só todos não os acompanhávamos, quando alguns de nós em protecção afastada, efectuavamos  operações de patrulhamento à distância com a finalidade de localizar ou não o inimigo, criando assim a segurança aos trabalhos na picada, aos funcionários da Tecnil e aos nossos camaradas que de um lado e outro da picada, em pontos estratégicos efectuavam uma vigilância mais próxima. A Unita embora colocasse minas e armadilhas, evitava o confronto directo, dado o facto de se estar a construir um bem duradouro. O que mais custava ao nosso "pessoal", após um dia na picada e dado o afastamento dos trabalhos em relação ao nosso acampamento, pelo menos aos elementos escalados a nível de secção, era permanecer toda a noite junto às máquinas até serem rendidos de manhã por dois grupos de combate. Os nossos amigos da Tecnil não se escusavam de colocar as máquinas em posição estratégica, onde boa parte do pessoal à noite se abrigava. Enfim, a vida continuava.

Lembrei-me de escrever estas linhas ao correr da pena, porque tive a agradável surpresa, de há poucos dias receber um mail do Celso, funcionário da Tecnil, que passou a ser nosso seguidor e que acompanhou também, não só no Lungué-Bungo, os trabalhos da futura estrada Luso/Gago Coutinho. Teve também, a gentileza de nos enviar umas fotos, que penso pertencerem a pessoal estacionado no Lutembo ou Gago Coutinho. Aproveito, também para postar algumas que tenho em meu poder.

                        As fotos do Celso com a respectiva legenda
FOTO 2
FOTO 1









Foto 1 -  Esta foto foi na loja do Fonseca, infelizmente só me recordo do nome de duas pessoas nunca mais os voltei a ver, sei que o fuzileiro era conhecido por PORTO, adora cerveja. heheheheh
Foto 2 - Esta foto foi de um rebentamento de uma mina, no carro de abastecimento de gasóleo às máquinas, o motorista entrou na picada ao lado da estrada e apanhou a mina, felizmente não morreu, ficou bastante ferido e fui eu que o levei ao hospital do Luso.
FOTO 3
FOTO 4











Foto 3 - Esta foto que envio foi tirada em Gago Coutinho, com militares da v/companhia, eu sou o do meio, lembro-me bem foi um domingo e tínha-mos ido beber umas bejecas
Foto 4 - O nosso seguidor não enviou legenda para esta foto. Penso ser tirada na tenda do Fonseca.

Convivíamos várias vezes, para além do serviço, especialmente no Lungué-Bungo, (os petiscos na tenda do Fonseca) com o pessoal da Tecnil inclusive o seu cartógrafo e esposa, estabelecendo franca camaradagem.

                                Algumas fotos que recolhi
AO FUNDO ESPOSA CARTÓGRAFO
TENDA FONSECA










PERNOITA NA PICADA
O ABATE DE ÁRVORES

A DESLOCAÇÃO
ÁREA PROTEGIDA.PLANEAMENTO

PREPARAR PERNOITA
ÁREA PROTEGIDA.DESCANSO

O TRABALHO
MÁQUINA A OPERAR






OUTRO LOCAL PERNOITA
OUTRA NOITE NA PICADA






ACAMPAMENTO 
L BUNGO.24 MESES COMISSÃO














Bem haja Celso por nos fazeres recordar esses já longínquos momentos e pelas fotos que enviaste.

Aquele abraço
JM

terça-feira, 11 de março de 2014

XII - O CHOQUE BRUTAL

-FARDA OU FARDO?-
Chego dia 27 de fevereiro. Viagem de carro para casa. No trajeto introduzem perguntas curiosas sucessivas, mas também reveladoras, percebi logo, de neutralizar as minhas em relação a meu pai, razão da minha vinda acelerada.
Entro no quarto, ele, deitado na cama, com a feição completamente desfigurada, entra num choro convulsivo, dizendo, numa voz deficiente: “vens da Guerra, não te despediste de mim, e agora vês-me nesta forma!”. Eu, qual durão ceráceo, retorqui: “o paizinho (assim lhe chamava eu) está com razoável aspeto e vai recuperar rapidamente, vai ver!”. Saio, fecho-me no Quarto-de-Banho e choro desesperadamente procurando abafar o som, pois um homem não chora, muito menos “um guerreiro”. 

Gozo os 30 dias normais da praxe mais os 5 ao abrigo do então Artigo 109º (se a memória não me atraiçoa). Tempo dum relaxamento tenso, convívio com a família e com a namorada. Os amigos estavam todos em África. Ida ao Quartel-General no Porto, para carimbar o Passaporte Militar, como mandavam as regras, para confirmar a presença na cidade.
EM CASA DE MEUS PAIS,COM NOÉ FONTES-IRMÃO DUM
CAMARADA, TAMBÉM AMIGO DE INFÂNCIA, QUE SE ENCONTRAVA
EM LUANDA, NO POSTO DE SPM (SERVIÇO POSTAL MILITAR)
DO GRAFANIL-, E QUE, POR SER UM POUCO MAIS VELHO, JÁTINHA
PASSADO À DISPONIBILIDADE, SEM MOBILIZAÇÃO. IGNORAVA ELE 
QUE , PASSADO 3 ANOS, ESTARIA EM CABINDA, COMO CAPITÃO MILICIANO.
TAMBÉM SE TORNOU BANCÁRIO, MAS NO BANCO TOTTA & AÇORES.


O Dr. Cruz, acompanhante da doença de meu pai, tio dum cunhado meu, informa-me, com indisfarçável dificuldade: “Jorge, quando voltar para Angola não vai voltar a ver o seu pai! Vai-lhe dar o 3º AVC – estão reunidas todas as condições, não sei é quando ocorrerá – e ele não irá resistir”. Fiquei siderado.
O tempo de regresso aproxima-se rapidamente pois o tempo de convívio não passa ... voa. Peço à família que quando, e se, o pai falecer não me avisem de imediato, pois não quero conceber a ideia de receber um telegrama informando-me desse facto e eu não poder estar junto a ele. “Comuniquem-me passados aí uns dez dias”, disse eu.

Decorridos num ápice os dias 27 e 28 do segundo mês daquele ano de 1970, todo o mês de março e o 1º de abril, estou eu de mala feita para embarque no dia 2 em Pedras Rubras.

Entro no quarto de meu pai, e ele, balbuciando, diz: “já vais, não é? Vai, vai, é o teu dever e deves cumprir essa obrigação”. Nascido em 1903, viveu as duas Guerras Mundiais. O termo “guerra” era muito emblemático para ele, mas teve sempre um sentido muito patriótico acerca dos conceitos da época sobre as Províncias Ultramarinas. Sabia bastante da matéria relacionada com a defesa das Colónias aquando da I Guerra Mundial. Eu, qual autómato sorumbático, aparvalhado, dou-lhe um beijo e um abraço e saio rapidamente do quarto. Procuro colocar a minha mente já em Angola para tentar fintar o pensamento que me assalta e me fere o coração.

Abraços e choros circunstanciais dos presentes, entro no Caravelle da TAP em Pedras Rubras e concentro-me já em Lisboa, onde me aguarda um Jumbo (Boeing de 2 pisos) na sua viagem inaugural, chamado “Vasco da Gama”, com destino a Luanda.

A premonição do médico foi cumprida quatro meses depois.


Carlos Jorge Mota

OUTROS CONVÍVIOS

-NOTÍCIA-
Saiu no último sábado, mais um PE publicado no CM e que aqui vamos postar.
JM
PONTO DE ENCONTRO
CORREIO DA MANHÃ
08MAR2014

sábado, 8 de março de 2014

XI - FÉRIAS FORÇADAS

-FARDA OU FARDO?-
Dia de chegada do Cessna, dia de Correio, portanto. Uma operação helitransportada iria decorrer nos dias seguintes, portanto, a Coutada estava com todos “os nossos primos” pertencentes à Esquadra de Alouettes de Apoio. Estou a ler a carta recebida de casa e tenho os olhos lacrimejantes. Um carcamanho aproxima-se de mim e pergunta: “Bad news?” Explico-lhe que o meu pai está muito doente, que diz que não quer morrer sem me voltar a ver, e a família pergunta se posso vir à Metrópole. Estiveram meses a esconder-me dois AVC’s que o meu pai sofrera, no espaço de poucos meses. Ele nunca se conformou com a minha ida para África, até porque não tive coragem de me despedir dele. Parti como se voltasse no próximo fim-de-semana, mas sabia que iria para o Uíge daí a dias. Como já estávamos em 1970, logo no ano imediato ao início da Comissão, eu tinha já direito a férias. Contei a situação ao Capitão Santana e ele disse logo de imediato: - “Oh Mota, trate já disso que eu dou despacho favorável já hoje e remeto para o Comando de Setor, via Rádio, para aprovação”. Tudo resolvido com muita rapidez, incluindo os contactos com a TAP para aquisição dos bilhetes e do benefício que nós, militares, tínhamos em poder pagar em 12 prestações mensais, descontadas no vencimento (soldo). Embarco no Cessna sul-africano para Serpa Pinto e fico lá a aguardar passagem para Luanda, por avião da D.T.A. (Divisão dos Transportes Aéreos), via Nova Lisboa, uma vez que o voo não era diário.
O CASTRO MARIA, O AUTOR, O ACÁCIO SAMPAIO
E OUTRO CAMARADA
Aí sou acolhido pelo pessoal graduado, quase todo do meu Curso de Milicianos. Estou com o Acácio Sampaio (meu amigo de infância), com o Rego, com o Fernandes, com o Zé Mário (e a sua cabrinha), com o Castro Maria e outros mais que não me lembro. Estando no quarto a ver fotografias, vejo, numa delas, o Sarreirita, camarada que pertencia ao meu Pelotão de Instruendos e em cuja fila, que era por alturas, ficava muito próximo de mim. Ele sofria do coração e tinha dificuldades nos crosses. Levei-lhe a arma, carregando duas, portanto, várias vezes, porque ele fraquejava um pouco. Dizia nessa altura que tinha a certeza que iria para Atirador e que iria morrer na Guerra. Dizia-lhe eu; “eh pá, as tuas chances são as mesmas das minhas e de todos nós! Tem calma e vamos mas é acabar esta fase”. Nunca mais o vi, pois cada um seguiu o seu destino, para as mais diversas Especialidades. Retomando a narração: pergunto então por ele e fico a saber aí o que lhe aconteceu no Lupire, Destacamento do Cuito Cuanavale. Mais tarde, muitos anos depois, através do David Ribeiro, meu colega de Banco e que com ele estava no Destacamento, conheço todos os pormenores deste lamentável acidente. Ironia do destino: o Castro Maria, citado acima, acabada a Comissão, também se tornou meu colega de profissão, pois empregou-se no Banco Borges & Irmão, primeiro no Porto, onde o encontrei várias vezes, depois em Vila do Conde, sua terra natal e onde vivia, cuja família era e é conhecida pela alcunha dos Varelas. Num brutal assalto ao Banco, perpetrado por energúmenos transportados de moto, ele é abatido com um tiro na cabeça, pois, não se tendo apercebido de nada porque estava absorvido no computador, não se imobilizou, como os bandoleiros exigiram. Fui ao seu funeral que, com tanta gente presente e a demora do cortejo fúnebre, só desceu à terra já noite cerrada.

Embarco para Luanda e logo nessa noite parto para o Porto, via Lisboa, em avião da TAP. Estávamos em fevereiro, frio de rachar, e eu com roupa tropical. A família e namorada me esperavam no Aeroporto de Pedras Rubras, com o meu sobretudo, um chapéu e um cachecol.  
                             
Carlos Jorge Mota

terça-feira, 4 de março de 2014

X - ATAQUE...DE DENTRO PARA FORA

-FARDA OU FARDO?-
Quando se regressava duma caçada, geralmente à tardinha, depois da saída pelo amanhecer, formalmente em patrulhamento, o animal capturado ficava pendurado numa árvore alta junto ao local destinado a Refeitório, para arrefecimento da sua carne durante a noite e posterior desmancho logo pela manhã cedo. Óbvio que nessa escuridão quase total, um pouco aliviada nas luas-cheias, as sentinelas teriam que redobrar a atenção porque os leões, atraídos pelo cheiro, frequentemente aproximavam-se muito do arame-farpado e, por vezes, até tocavam nas latas, garrafas e tudo que chocalhasse, lá pendurado por razões de segurança. O bicho Homem, principalmente quando em grupo, mete respeito a todo o animal, por mais feroz que ele seja. A Coutada continha dois pontos de entrada, sem arame, para tráfego das viaturas, mas com pessoal em vigilância, e ainda a larga chana, em declive mas sempre iluminada com holofotes, por razões óbvias.
LOCAL REFEITÓRIO PARA O PESSOAL (PROVISÓRIO)

BÚFALO. FIZ PARTE DESTA
CAÇADA












De noite, como é normal nos Quartéis, e ali por razões acrescidas, é colocado pessoal de reforço para vigilância em locais interpostos entre os pontos normais diurnos. Em cada posto ficavam 3 soldados cujo tempo de sentinela era de duas horas, com descanso de quatro horas para dormida no chão, e cada um ia acordando o seguinte, até fim do serviço.

A hora da temperatura mais baixa, em qualquer parte do planeta, é por volta das 6 horas da manhã, e, talvez já pelo cansaço e também pelo frio, era frequente, na ronda aos postos, serem encontrados os três soldados a dormir, portanto, posto sem vigilância. Por razões decorrentes da minha atividade dentro do Aquartelamento, a minha ronda era sempre a última, isto é, exatamente a que abrangia aquela terrível hora. E eu seria, porventura, o Graduado que mais soldados encontrava a dormir. Uma participação formal dessa ocorrência traria como consequência uma punição extremamente severa para o infrator, inclusive julgamento em Tribunal Militar, razão por que, normalmente, em toda as latitudes, as participações, quando elaboradas, descreviam uma situação de “menor atenção”, nunca “a dormir”, embora o Comandante, fosse a que nível fosse, percebesse imediatamente o que realmente tinha acontecido. Na Companhia de Caçadores 2506, que eu tenha conhecimento, e julgo estar bem informado, nunca se fez qualquer tipo de participação por tais razões. Para evitar que, estremunhados, pudessem ter uma reação perigosa, segurávamos as armas dos três soldados, porque desconhecíamos quem competia estar de vigia, e acordávamo-los. O infrator pedia desculpa e diziam todos, depois, como que para atenuar os efeitos: “não há problema, aqui não há turras”. Incutíamos-lhes a ideia, que era verdadeira, que naquele tipo de terreno, um ataque ao quartel se faria sempre com tiro curvo (de morteiro, por exemplo), pois com tiro direto noturno os “turras” denunciariam as suas posições.

Como esta situação, pela nossa avaliação, se poderia tornar perigosa – um dia os guerrilheiros iriam apanhar-nos à cama e levar-nos “à unha” – decidiu-se, num período em que o Capitão Santana estava ausente em Luanda, não me lembro já por que razão, e quem comandava a Companhia era o Madureira, por ser o Alferes com o Curso de Operações Especiais, logo, com a Nota de Curso mais alta, deliberou-se, como atrás digo, fazer-se uma simulação de ataque, como sendo verdadeiro, ao Aquartelamento. Assim se decidiu, assim se fez. À noite, todos os Graduados se colocaram na Messe, com exceção do 1º Vilares e do Candeias, penso que só estes, mas foram avisados, e eu, trocando a última ronda pela primeira, depois de passar o primeiro posto e entre este e o segundo, atiro uma granada ofensiva para fora do espaldão. Imediatamente, do lado precisamente oposto, o Freitas procede de igual modo. Bum! Bum! foi ouvido em pontos diametralmente opostos. Gerou-se logo uma situação confusa, com o pessoal a sair das tendas e a correr para os abrigos, mas alguns fazendo já fogo, penso que para o ar. Comecei a ouvir uma fuzilaria atrás de mim e pensei que iria morrer ali com um tiro pelas costas. Começo a gritar “alto ao fogo!”, “alto ao fogo!”, “só se abre fogo no abrigo e quando se localizar o IN!”.

Foram momentos curtos, de uns 10 minutos, mas muito problemáticos. Fiquei meio surdo do ouvido esquerdo e ainda hoje carrego essa deficiência nos sons agudos. O homem da Metralhadora Breda, do lado esquerdo, varreu toda aquela zona, já via até, na escuridão, os turras a correr na pista …

Para aumentar a credibilidade do ato, imediatamente saiu um Grupo de Combate para a mata, bateu toda a zona circundante num raio de cerca de 2 Kms e lá pernoitou.

Por mera e feliz coincidência, no dia seguinte deslocou-se de avião à Coutada o 2º Comandante do Batalhão a que estávamos adidos, Major José Maria Barroso Branco Ló, e, pelo Madureira, ainda na pista, foi-lhe relatado o que havíamos feito. Ele ouviu e aquiesceu, não sei se por dedução pragmática militar da positividade aplicada ou se por mera condescendência compreensiva… Essa vinda deu-nos a possibilidade de gerar na mente do Pessoal de Transmissões a razão da não inclusão no Sitrep desta ocorrência, o que não diminuiu a sua verosimilhança. Todos os Graduados fizeram um Pacto de Silêncio sobre o assunto e o compromisso de esta Simulação nunca ser revelada. Certo, certo, certo, é que nunca mais se apanhou uma sentinela a dormir!... E eles andavam mesmo por ali, conforme desenvolvimentos posteriores vieram a demonstrar.

Penso que, agora, passados mais de 40 anos, este compromisso solene pode ser quebrado, razão por que cito aqui esta façanha, que nos poderia ter saído muito cara, se as coisas tivessem corrido mal. Mas … era a exigência do momento … e os 23/24 anos de idade também ajudaram um pouco… E era a Guerra!...

                               
Carlos Jorge Mota